Sangue real

Rei Arthur (quadro de Frank Dicksee)

Todo mundo sabe que o termo “sangue azul” faz referência à nobreza. Esse termo tem origem, segundo a teoria mais aceita pelos etimologistas, na Espanha do século 6, tendo surgido num contexto de preconceito étnico, religioso e cultural. Segundo o etimologista Deonísio da Silva, da Universidade Estácio de Sá, “faz referência à cor clara da pele, sob a qual destacavam-se veias e artérias azuis – quase invisíveis na pele de mouros e judeus, constantemente expostos ao sol durante o trabalho.”

Obviamente, nenhum membro da realeza possui sangue azul, todos possuem sangue vermelho. Contudo, alguns animais possuem o sangue do tipo diferente do que se acha ser o convencional sangue vermelho. Alguns animais, por exemplo, realmente têm sangue azul, mesmo não pertencendo à nenhuma nobreza.

Mesmo sem pertecer à nobreza, o límulo (figura 1) merece muita reverência. À primeira vista o límulo pode parecer um crustáceo, motivo pelo qual é vulgarmente conhecido como caranguejo-ferradura, entretanto esse animal estranho faz parte do Subfilo Chelicerata, do qual também fazem parte os aracnídeos (Ordem Arachnida), como as aranhas e escorpiões. Os límulos são artrópodes com uma história evolutiva que remonta ao Período Ordoviciano (cerca de 445 milhões de anos atrás), do qual fazem parte os fósseis mais antigos que apresentam o mesmo plano corporal básico dos remanescentes atuais da Ordem Xiphosurida, da qual fazem parte os límulos. Devido à essa característica, os límulos são chamados de “fósseis vivos”, um termo vulgarmente mal utilizado por leigos (ver o artigo de Romano, Riff & Oliveira, 2007 em “Bibliografia” no final do post).

Figura 1: Um exemplar de Limulus polyphemus na praia (© MickiP65/Flickr).

Atualmente, os límulos são representados por quatro espécies, pertencentes a três gêneros diferentes: a espécie mais conhecida, Limulus polyphemus, encontrado ao longo da costa nordeste do Oceano Atlântico (EUA) e Golfo do México; e outras três espécies asiáticas, Carcinoscorpius rotundicauda, encontrados em manguezais do sudeste asiático; Tachypleus gigas, encontrado no Sul e Sudeste do litoral asiático e Tachypleus tridentatus, encontrado ao longo do litoral Leste asiático (para ver mais detalhes sobre as espécies, acesse The Horseshoe Crab Org). São animais que vivem em ambientes marinhos próximos a costa ou mesmo em manguezais. São animais bentônicos, ou seja, vivem sobre o substrato marinho onde alimentam-se de pequenos crustáceos, anelídeos, moluscos e outros pequenos animais marinhos. Também desempenham papel fundamental na dinâmica ecológica das comunidades estuarinas e costeiras (Botton 2009).

Durante a época de acasalamento é que os límulos são mais visados, pois costumam migrar aos milhares para as praias próximas onde vivem (figura 2). Durante o acasalamento, as fêmeas cavam buracos na areia e neles depositam seus ovos que em seguida são fertilizados pelos machos. As fêmeas costuma depositar entre 60.000 e 120.000 ovos de uma só vez, muitos deles servindo de banquete para várias aves litorâneas. Os ovos que escapam da predação, eclodem cerca de 2 semanas depois e as larvas então seguem para o mar.

Figura 2: Evento de acasalamento de Limulus polyphemus em uma praia dos EUA (© Gregory Breese/Flickr).

Apesar do importante papel ecológico desses animais, a característica que mais tem chamado a atenção dos cientistas é justamente seu sangue azul. Nos animais de sangue vermelho, como os vertebrados e outros, a proteína hemoglobina é reponsável pelo transporte de oxigênio e possui ferro em sua composição – o ferro, ao se ligar ao oxigênio confere a coloração vermelha característica. Nos límulos essa função é desempenhada pela hemocianina que possui cobre em sua composição, conferindo assim a cor azulada. Porém a cor azul do sangue dos límulos é um mero detalhe comparado à sua utilidade na Medicina.

Os límulos possuem um sistema circulatório aberto e um sistema imunológico bastante simples. Por viver no ambiente marinho e seu sistema circulatório permitir o contato direto com a água por muitas aberturas em suas carapaças, estão o tempo todo expostos à vários tipos de bactérias que podem causar alguma infecção grave. A simplicidade do seu sistema imunológico é na verdade o que faz o sangue dos límulos ser bastante útil para a indústria biomédica. Para combater infecções, o sangue dos límulos contêm amebocitos, que desempenham papel similar aos leucócitos no sangue dos vertebrados que ajudam na defesa do organismos contra patôgenos. Esses amebócito são bastante eficientes no combate a fungos, bactérias e vírus, bloqueando rapidamente o ataque desses microorganismos.

Figura 3: Extração de hemocianina de Limulus polyphemus em laboratória americano (© National Geographic).

Amebócitos do sangue de L. polyphemus são usados na preparação do lisado de amebócitos de Limulus (LAL) que é usado na detecção de endotoxinas bacterianas. Há mais de quatro décadas a medicina tem utilizado essa incrível capacidade do sangue destes excêntricos animais, devido ao trabalho pioneiro de Fred Bang em 1956 (ver em “Bibliografia” no final do post). Foi descoberto que quando o sangue de L. polyphemus era exposto à bactéria Escherichia coli, ele coagulava. Essa coagulação indica a presença de endotoxinas – substâncias tóxicas liberadas por E. coli e outras bactérias gram-negativas que produzem sintomas severos em humanos expostos a elas, causando desde de febre a infecções generalizadas (sepse).

Figura 4: Coleta de Limulus polyphemus na costa dos EUA (© National Geographic).

Infelizmente, essa mesma incrível característica dos límulos também tem sido o motivo da sua desgraça. Os números de indivíduos das quatro espécies tem declinado com o passar dos anos (principalmente L. pplyphemus nos EUA), em parte devido às óbvias alterações no ecossistema marinho e aquecimento global. O outro motivo é devido à exploração desordenada da indústria farmacêutica (figura 4) – um litro de sangue de L. pplyphemus custa cerca de U$ 15.000. Contudo, para obter o composto LAL, requer-se o sangue de ao menos 500.000 destes animais ao ano, dos quais são extraídos ao redor de 100 mililitros de cada um. Estudos recentes demonstram que durante o processo 15% dos límulos morrem, os demais são devolvidos à água.

Contudo, os cientistas também têm realizado avanços para a proteção destes animais, como uma espécie de contribuição por todos os benefícios extraídos dos límulos. Pesquisadores têm direcionado atenção ao processo de produção do LAL sem a utilização de límulos, explorando o potencial para cultivar e produzir LAL através de outras fontes. Também houve avanços na coleta e extração a partir de animais criados em cativeiro. Aliado a esses estudos, pesquisas de biologia básica sobre a reprodução também tem ajudado na preservação das espécies de límulos.

Graças a esses animais anatomicament estranhos, muitas vidas têm sido salvas. O extrato LAL (lisado de amebócitos de Limulus), os testes para detecção de endotoxinas bacterianas tornaram-se rápidos e efetivos em numeros produtos farmacêuticos. Sendo uma forma simples, barata e segura para detectar toxinas bacterianas, a hemocianina extraída dos límulos é um importante composto no desenvolvimento da biomedicina, ajudando no desenvolvimento de novos antibióticos e vacinas.

Preservar esses organismos, além de ajudar na manutenção da biodiversidade, também garante muitos benefícios a nós mesmos. Um grupo de animais que têm mantido sua forma por centenas de milhares de anos ao longo de sua história evolutiva e que tantos benefícios trouxe para nós, merece permanecer na Terra por muitos outros milhares de anos.

Um límulo ao pôr do sol nos EUA (© Breighana Campion/Flickr).

Bibliografia

Bang, F.B. 1956. A bacterial disease of Limulus polyphemus. Bulletin of the Johns Hopkins Hospital, 98 (5): 325-51.

Botton, M.L. 2009. The ecological importance of horseshoe crabs in estuarine and coastal communities: a review and speculative summary. In: Tanacredi JT, Botton ML, Smith DR (ed.). Biology and Conservation of Horseshoe Crabs. New York: Springer, 45−64.

ERDG – Ecological Research & Development Group. 2009. The Horseshoe Crab Org Website. Disponível em: http://http://horseshoecrab.org/

Novitsky, T.J. 2009. Biomedical Applications of Limulus Amebocyte Lysate. In: Tanacredi JT, Botton ML, Smith DR (ed.). Biology and Conservation of Horseshoe Crabs. New York: Springer, 315−329.

Romano, P.S.R.; Riff, D. & Oliveira, G.R. 2007. Porque um fóssil vivo não pode existir: dedução lógica através de abordagem sistemática. In: Carvalho, I.S.;Cassab, R.C.T.; Schwanke, C.; Carvalho, M.A.; Fernandes, A.C.S.; Rodrigues, M.A.C.; Carvalho, M.S.S.; Arai, M. & Oliveira, M.E.Q. (eds.) Paleontologia: Cenários de Vida, Volume 2. Interciência, p. 51-59.

Rudkin, D.M. & Young, G.A. 2009. Horseshoe Crabs – An Ancient Ancestry Revealed. In: Tanacredi JT, Botton ML, Smith DR (ed.). Biology and Conservation of Horseshoe Crabs. New York: Springer, 25-44.

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