O verdadeiro monstro

Domingo passado estreou no canal de TV por assinatura Discovery Channel a “Semana do Tubarão“. Todos os anos o canal exibe uma série de documentários excelentes sobre esses animais e inspirado por essa semana, resolvi escrever um pouco sobre esses excelentes predadores (figura 1). Antes que comecem a estranhar o título do post, leiam até o final para entender.

Figura 1: Um tubarão branco saltando para capturar uma presa.

Os tubarões fazem parte de um antigo grupo de peixes com esqueleto cartilaginoso, a Classe Chondrichthyes. Dentro dessa Classe, são classificados juntos com as raias na Subclasse Elasmobranchii. Os elasmobrânquios se originaram durante o Período Carbonífero a cerca de 400 milhões de anos, passando logo em seguida por uma rápida diversificação. Após esse período inicial, já no Período Jurássico, os elasmobrânquios passaram por uma nova fase de diversificação durante a qual evoluíram as formas recentes, incluíndo as primeiras raias e assim a separação entre esses dois grupos (Superordens) de elasmobrânquios: tubarões (Selachimorpha) e raias (Batoidea).

Figura 2: Reconstituição de alguns tubarões fósseis.

Fósseis dos tubarões mais antigos conhecidos tinham uma aparência bastante diferente da que possuem seus parentes modernos. Alguns se pareciam mais com as enguias do que com verdadeiros peixes. Muitos tinham focinhos arredondados em vez dos pontiagudos que associamos aos tubarões atuais (figura 2).

Além disso, possuíam cérebros menores e dentes mais lisos, e não tão aguçados e serrados como os dentes típicos das espécies modernas. As suas barbatanas eram menos flexíveis e manobráveis, por isso é possível que os tubarões ancestrais fossem menos ágeis do que os de hoje.  Mas, de certa maneira, eles eram bastante semelhantes aos animais que hoje em dia denominamos  “tubarões”, com o mesmo esqueleto cartilaginoso, as  múltiplas fendas branquiais e dentes substituíveis.

Atualmente existem cerca de 440 espécies de tubarões no mundo, variando desde de pequenas espécies como o tubarão lanterna anão (Etmopterus perryi) – uma espécie de águas profundas com cerca de 17 centímetros de comprimento – a espécies enormes como o tubarão baleia (Rhincodon typus), uma espécie que alcança um pouco mais de 12 metros de comprimento que apesar do enorme tamanho é um gigante pacífico, alimentando-se principalmente de plâncton, pequenas lulas e peixes por filtração.

Os tubarões modernos praticamente não sofreram mudanças significativas em seu plano corporal desde a última grande radiação adaptativa. Devido a essa peculiaridade estes animais (principalmente o grande tubarão branco) são conhecidos por serem “máquinas” de matar perfeitas“, um termo que muito subestima a importância ecologica e evolutiva dos tubarões. Os tubarões em geral são os predadores de topo nas cadeias alimentares das quais fazem parte e portanto exercem uma função chave nos ecossistemas que ocupam. Predadores de topo normalmente interagem direta ou indiretamente com muitos outros organismos, influenciando todos os outros níveis tróficos. Sua presença funciona como um regulador da comunidade biológica, sendo portanto essenciais aos ecossistemas.

Estudos recentes têm documentado declínios sem precedentes nas populações de predadores de topo nos mares, o que pode desencadear uma cascata trófica, afetando de maneira catastrófica os demais níveis tróficos da cadeia alimentar (Heithaus et al. 2008). No caso específico dos tubarões, de acordo com a Organização das Nações Unidas para a Alimentação e Agricultura (FAO), mais de um terço das espécies existentes estão ameaçadas ou quase ameaçadas de extinção. Estima-se que mais da metade dos tubarões altamente migratórios estão ou sobreexplotados ou dizimados. A cada ano, cerca de 100 milhões de tubarões são mortos para fins comerciais ou por pesca esportiva. Uma das atividades pesqueiras com maior impacto é a pesca para retirada das barbatanas (shark finning), consideradas iguarias em muitas partes da Ásia e em alguns restaurantes de comidas exóticos em todo mundo. Nos últimos 30 anos, a população de muitas espécies de tubarões tiveram um declínio da ordem de 60% a 70%, e em casos específicos, chegando aos 90% de declínio!

Figura 3: Cartaz do filme "Tubarão" (Jaws) de Steven Spielberg.

Durante o início da década de 1960, após uma série de ataques e acidentes envolvendo tubarões na costa da Austrália, ocasionando a morte de 3 mergulhadores em um curto intervalo de tempo, as pessoas em geral passaram a ter uma falsa concepção sobre os tubarões. O medo coletivo de tubarões culminou com o lançamento do filme “Tubarão” (Jaws) de Steven Spielberg (figura 3) em 1975. O filme é baseado no romance homônimo escrito por Peter Bencheley, no qual um grande tubarão-branco é retratado como uma monstruosa máquina de matar pessoas. Como se já não fosse suficientemente ruim a imagem que a população em geral tinha destes animais, o aspecto do tubarão retratado no filme, tornou essa imagem ainda mais aterrorizante. Muitas pessoas passaram a ter um medo quase irracional e evitavam praias onde houvessem registros de ocorrência de qualquer espécie de tubarão.

Embora não fosse essa a intenção do diretor, as pessoas acabaram associando os tubarões à “monstros assassinos” e assim foi dado início a uma matança indiscriminada destes animais no mundo inteiro. O declínio das populações de tubarões aumentou consideravelmente após o lançamento do filme e principalmente no caso do tubarão-branco (Carcharodon carcharias), a matança tornou-se mais intensa com a histéria coletiva causada e em menos de uma década a espécie já era considerada em risco de extinção. Atualmente, de acordo com a IUCN, a espécie encontra-se em estado de conservação vulnerável, embora os estudos sobre a conservação desta espécie ainda não sejam considerados satisfatórios.

Embora muito ainda precise ser feito, felizmente nos últimos anos tem se dado mais atenção aos tubarões, incluindo diversas ações de conservação aliadas à pesquisas diretamente direcionadas para a conservação de espécies importantes em algumas partes do mundo, incluindo o Brasil. Uma das importantes ações de conservação destes animais inclue a utilização dos mesmos como parte do Ecoturismo, com a prática do mergulho recreativo, gerando emprego e renda para comunidades costeiras que encontram-se atualmente em crise devido a sobrexploração de recursos pesqueiros. Algumas Organizações Não-Governamentais também têm realizado esforços consideráveis para a conservação de tubarões no mundo inteiro, como por exemplo a Sea Shepherd (figura 4a) que atua nas principais nações e o Instituto Aqualung, com o Projeto Tubarões do Brasil (figura 4b).

Figura 4: Projetos de ONGs para conservação de tubarões: a - à esquerda, campanha do Sea Shepherd. b - à direita, campanha do Instituto Aqualung.

Enquanto isso, algumas nações têm tomado importantes iniciativas. A República de Palau é uma das nações que lideram o esforço internacional para a conservação dos tubarões, e está co-patrocinando a proposta de listar oito espécies de tubarões na Convenção para a regulamentação do Comércio Internacional de Flora e Fauna Ameaçadas (CITES). Estas propostas foram consideradas em março de 2010, quando as delegações de 175 países signatários se reuniram em Catar. As propostas aprovadas (que podem ser lidas em http://www.cites.org/eng/cop/15/raw_props.shtml) poderão reduzir de forma significativa o comércio dos tubarões galha-branca oceânico, galhudo, fidalgo, marracho, cação-bagre, e três espécies de tubarão-martelo. O governo do Brasil ainda não divulgou sua posição sobre essas importantes propostas, provavelmente por pressão contrária do Ministério da Pesca, cuja posição anti-conservação e pró-pesca industrial, sem qualquer preocupação com o futuro e muito menos com os usos não-predatórios como o mergulho, já causa constrangimento ao Brasil em reuniões internacionais.

Com tudo isso, espero que possam compreender melhor o título desse post. Os tubarões são na verdade apenas mais uma vítima e a única espécie que poderia ser considerada o verdadeiro monstro, na verdade é o Homo sapiens.

Para saber mais:

Aguiar, A.A. & Valentin, J.L. 2010. Biologia e Ecologia alimentar de Elasmobrânquios (Chondrichthyes; Elasmobranchii): Uma revisão dos métodos e do estado da arte no Brasil. Oecologia Australis, 14 (2): 464-489.

Heithaus, M.R., Frid, A., Wirsing, A.J. & Worm, B. 2008. Predicting ecological consequences of marine top predator declines. Trends in Ecology & Evolution, Vol. 3 (4): 202-210.

Instituto Sea Shepherd Brasil. 2009. Campanha em Defesa dos Tubarões. Disponível em: http://seashepherd.org.br/tubaroes/

Insituto Aqualung. 2007. Projeto Tubarões no Brasil. Disponível em: http://www.institutoaqualung.com.br/protuba.html

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